sexta-feira, março 03, 2006

Capítulo VIII

Guilherme olhou novamente os diários, antes de voltar para a sua vida. Era sábado, não tinha de trabalhar nesse dia.

"Acho que o melhor que tenho a fazer é arranjar algo diferente com os miúdos." - Pensou sozinho.

“Tenho vivido para a descoberta, tenho sobrevivido e quase esquecido o que de mais importante me resta na vida, os meus filhos” – com mais um bater de mãos ele levantou-se da cama e foi tomar um banho.

Decidiu que era um bom fim-de-semana para ir dar a conhecer aos seus filhos a terra onde Ana tinha nascido. Convidou Bernardo para ir com eles, pois este ultimamente passava muito tempo sozinho.

Saíram de manha com o objectivo de irem almoçar com os pais de Ana, e assim seria a primeira vez que eles iam visitar os avós à terra deles. João e Carolina ficaram entusiasmados com tal visita e preparam-se para a partida em 15 minutos.

Guilherme, apesar de tudo, e de querer passar muito mais tempo com os seus filhos, levou um dos diários para ler quando se deitasse.

Chegados a Boticas, concelho pertencente ao distrito de Vila Real, terra de onde Ana era natural, os miúdos ficaram encantados com o rio, com as paisagens e com as histórias que o pai lhes contava.

Historias que a mãe nunca tivera oportunidade para lhes contar, aquelas conversas que Guilherme estava a ter com eles, eram vivências da sua Ana e sobre o que ela tinha vivido ali.

Agora em posição privilegiada para experimentarem as mesmas sensações que a mãe, quando tinha a idade deles, Carolina e João nem esperaram que o carro parasse para saltarem dos bancos de trás da carrinha do pai e correrem para os braços da avó Irina e do avô Carlos.

Era a primeira vez que estavam juntos desde o funeral da mãe.
O almoço foi a famosa e deliciosa vitela assada no forno a lenha preparada como só a Dona Irina sabia. Rapidamente os miúdos se puseram a fazer a típica “algazarra” infantil e a Avó “escoltou-os” até ao pátio, onde pôde participar e, acima de tudo, recordar a alegria das crianças que há muito faltava naquela casa.

Enquanto isso, eu e o Bernardo fizemos companhia ao Carlos ao trago de uma aguardente caseira.

- Há muito que vos esperava. Estava sempre a comentar com a Irina as saudades dos catraios – disse o Carlos com um olhar satisfeito.

- Não tem sido fácil conciliar o trabalho, os miúdos e o tempo livre. Tem sido sempre uma correria. Os miúdos estão cada vez mais traquinas. E sozinho… contra dois… Esgotam a pouca força que me resta quando saio do hospital.
- Pois, acredito que não seja fácil. Eles estão grandes e fortes, cheios de energia. E como é que eles têm conseguido ultrapassar a ausência da mãe? – perguntou Carlos com ar apreensivo.

- Por vezes ainda dou com a Carolina no nosso quarto a mexer nas coisas da mãe com as lagrimazitas nos olhos. Mas o João tem-se mostrado muito forte. Admito que por vezes ele é mais forte do que eu e tem-me ajudado imenso com a irmã.

- Então e tu? Como é que te estás a safar?

- Como posso. Dediquei-me às crianças e ao meu trabalho, na esperança de que isso me ocupasse o pensamento… mas devo admitir que me sobram sempre uns bocadinhos para a recordação. Parece quase um pesadelo e só preciso acordar, mas não consigo. Mas certamente é algo que tanto o Carlos como a Irina conhecem…

- Tem sido complicado… complicado… - disse Carlos com a voz rouca de quem reprime uma montanha de sentimentos - mas a vida segue em frente e nós com ela – terminou com um gole de aguardente.

- Claro – disse eu – ah… mas então e como vai a vida por aqui? Sabe, às vezes tenho um pouco de inveja deste sossego. Acho que me faria mesmo muito bem… e ao mesmo tempo, tenho medo de onde o meu pensamento me possa levar.

- Para as crianças seria bom virem cá mais vezes – disse o Bernardo, quebrando o seu silêncio, por entre olhares às montanhas fora da janela.

- Seria óptimo para ti e para eles – continuou ele – acho que o coraçãozito deles continua a sofrer perto das coisas da mãe. Precisam de férias.

- A Irina adoraria tê-los por cá, e eu também! – disse Carlos, com a expressão típica de avô babado com sede de juventude por perto, principalmente dos seus netos.

Carlos com o seu ar sempre distante, rapidamente voltou a falar das saudades que sentia e das conversas constantes com Irina sobre os últimos dias de Ana e as últimas coisas que haviam falado.

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

CAPÍTULO VII

Durante o duche, que me acordava pela manhã, a leveza da água que me escorria pelo corpo, relembrou-me do diário. Porque será que nunca fui capaz de ler aquele diário até ao fim?Possivelmente porque tive medo de lembrar, de recordar, de sentir como meu o que lá estava escrito, ou talvez pelo medo de não querer ler o que sentia Ana quando o escreveu. A dúvida, sempre presente, como uma força que nos prende e impede de agir.

Entretanto, com um abanar de cabeça, como que recusando continuar a ser fraco, sequei o meu corpo, atirei a toalha para o monte de roupa suja que se ia acumulando no chão do meu quarto e abri as portas do guarda-fatos. A primeira roupa que encontrei, vesti, era uma roupa desportiva, simples, algo para me sentir confortável.

Sentei-me no canto da cama. Agarrei o diário que permanecia teimosamente fechado em cima da minha mesa-de-cabeceira desde o dia em que íamos de viagem. Não o quis levar connosco porque era precioso demais e qualquer descuido seria uma perda imensa. Olhei-o com um misto de sensações a percorrerem-me o corpo. Num só momento revi toda a nossa vivência conjunta. – O que diria o diário sobre isso? A muito custo, abri o diário.

"Uma nova etapa, um novo fiel depositário de memórias!" - Começava assim aquele livro, no qual se sentia o cheiro do seu perfume, no qual se sentiam as marcas dos seus dedos, notava-se que tinha sido lido inúmeras vezes!

"Dia 6637 da minha vida (dia 17 de Outubro)

Esteve um dia lindo, onde o sol iluminava o parque como num dia de Verão, as folhas caiam com o balançar da brisa que as bamboleava.

Estava cheia de medo, sentia-me assustada, era uma experiência nova, aquelas pessoas todas trajadas, aqueles vozeirões junto dos meus ouvidos, simplesmente um olhar me deixou intrigada e ao mesmo tempo bastante inquieta. Não consigo explicar muito bem o que se passou. Quem era ou o que pode significar aquele rapaz para mim, aquele olhar absorvente, foi mágico, e deixou-me a pensar nele no momento em que o vi a virar a esquina quando foi embora. Não sei o que pensar. (…)”

- Será que essa pessoa era eu? - Perguntava-me eu passando os olhos uma linhas mais abaixo tentando descobrir a identidade dessa pessoa.

Nada mais descobri, nada mais ela tinha escrito sobre essa tal pessoa. Nem nessa, nem nas páginas seguintes. Falou das colegas, de como se sentia perdida, de como lhe estavam as correr as coisas na faculdade. Tinha ficado a saber mais agora sobre o que ela sentiu na altura, do que nos anos todos em que vivi a seu lado.

Continuei a ler todos os dias o seu livro, o livro onde ela descarregava todas as suas ideias, todas as suas vivências, todos os seus medos, todos os seus sonhos.

Li voltei a ler, cada página, como se estivesse a viver na pele de Ana o que ela estava a sentir. Tentei viver ou reviver aqueles momentos, aquelas dores, aqueles sorrisos, aquelas alegrias.

“Dia 6657 da minha vida (dia 6 de Novembro)

São 6h24min da manhã, acabei de chegar a casa, num dos dias mais importantes para mim, aquele olhar penetrante que me inquietou no dia da praxe voltou a aparecer, é um amigo da Sandra de perto de Viana, e ele tem um rosto mágico, tem um toque de anjo, tem um carinho na voz, ele chama-se Guilherme, acabei de o conhecer esta noite. É tão simpático, é tão simples, é tão charmoso. Trocamos números de telefone, trocamos ideais de vida, mas acima de tudo trocamos olhares, e que olhares. (…)”


Tinha descoberto que era eu o alvo de tal comentário. Recordei aquela noite, todas as palavras que lhe disse, todos os olhares que troquei com ela, todos os movimentos que ela fez, todas as expressões do seu rosto.

Nesse dia já era tarde, e não consegui ler mais pois tive de ir dormir. No entanto e quando cheguei do trabalho continuei a ler o livro, o seu livro, de forma tão absorvente, que quando antes lia três dias da sua vida sempre que me deitava, comecei a ler até cair de sono, dia após dia, semana após semana.

Recordei as mensagens que trocávamos, pois ela tinha-as todas transcritas para o seu diário, “partem vontades, mas ficam as saudades e nelas a certeza que uma simples distância separa abraços mas nunca separa o pensamento. Adoro-te”. Tinha esta mensagem sublinhada, com o dia em que a recebeu. Fez-me lembrar todos os momentos passados, fez-me recordar de cada tecla que premi e da incerteza que tinha de no final não conseguir carregar no “ok”.

“Dia 6702 da minha vida (dia 21 de Dezembro)

“As férias começaram, ainda hoje estive com ele e já sinto saudades do seu olhar. Inquieto-me por pensar que pode não passar de mais do que uma ilusão tudo aquilo que eu sinto, suspiro por ter me
do que isto acabe. Adoro estar com ele, desespero ao não ter a certeza do quanto ele quer estar comigo.

Não quero viver em função do seu olhar, do seu toque, da sua presença, mas não consigo evitar que me possua o pensamento. Desejo-o só para mim, queria abraça-lo, olhar fundo no seu interior, viajar pelo seu corpo e no fim entregar-me ao prazer de um atordoante beijo.

Convidou-me para sair, fê-lo no fim do jantar de aniversário da Sandra, o meu corpo tremeu quando de um modo discreto, ternurento e ao mesmo tempo intenso pegou na minha mão e, me convidou para jantarmos só os dois. Disse que tem algo importante para me dizer. O que será? A minha boca assim como todo o meu corpo disseram imediatamente que sim, não desejava eu outra coisa.”


Ao ler isto interroguei-me porque teria demorado tanto tempo para lhe dizer que a queria só para mim durante uma noite, ou durante o resto da minha vida. Lembro-me de na altura esperar um “nim”, mas como eu sempre disse, um não é certo, e arrisquei.

Possivelmente fi-lo no momento apropriado, na altura certa para perder a vergonha, e com aquele gesto recheado de incertezas quase que lhe disse o que o meu apaixonado coração sentia.

É curioso reviver todos aqueles momentos, mas colocando-me no corpo da outra pessoa. Muitas das coisas que encontrei no seu livro já não as tinha presente na minha memória. Ana, tinha capacidade de ocultar ou disfarçar aquilo que sentia e, apesar de querer ver em todos os seus movimentos, em todos os seus gestos, algo que me dissesse que ela estaria também disposta a entregar-se a mim, nunca fui capaz de o conseguir.


“Dia 6705 da minha vida ( 24 de Dezembro)

São 4:23 da manhã.

Passei o dia de ontem numa correria imensa nas compras de Natal de última hora. Andei todo o dia a pensar se haveria de comprar alguma coisa para oferecer ao Guilherme, decidi-me por fim que uma pessoa especial merece sempre algo, nem que seja um simples beijo.

A minha prima Sofia veio imediatamente ter comigo ansiosa para que lhe contasse as novidades da faculdade. Contei-lhe tudo à excepção de Guilherme. Acho que não é o momento de o partilhar com mais ninguém. Para já quero que ele seja só meu, só do meu
coração ou talvez só da minha imaginação.

Hoje o meu telemóvel não parou de tocar, ou eram mensagens ou telefonemas, mas nenhuma noticia era dele, do “Meu Guilherme”, quando me refiro a ele já só me apetece tratá-lo assim “MEU”.

Não sei o que se passa comigo, ou sei e, tenho medo de entender, de ver a realidade tal como ela é. Eu estou apaixonada, sim, eu estou apaixonada! Se não é amor, que sentimento é este que eu tenho dentro de mim, que me faz pensar nele a todo o momento? Neste instante só tenho uma certeza, tenho saudades dele, do seu olhar, do seu sorriso, da sua companhia, do seu humor, tenho saudades do seu cheiro, tenho saudades dele…”


Lembro-me bem daquelas férias de Natal, foram as primeiras férias que me pareceram intermináveis.

Ela não me saía da cabeça, tinha-me conquistado por inteiro, o meu coração, a minha cabeça, o meu respirar, toda a minha existência era em função de uma pessoa, de um rosto, de um sorriso e de um nome, Ana.

Naquela noite de Natal quando falei com ela estava muito nervoso, tinha medo de lhe ligar e nem sei porquê. Quando ela atendeu o telemóvel notei que estava ansiosa, preocupada, intrigada, e ao mesmo tempo feliz, por ter ligado. Naquele momento não dei importância, agora ao ler o seu livro entendo que há muito esperava o meu telefonema e que tal como eu sentia saudades.

“Dia 6713 da minha vida ( 1 de Janeiro )

Primeiro dia do ano!

As saudades que sinto do Guilherme são mais que muitas. Temos trocado algumas mensagens, mas não chega para tapar o vazio que a ausência dele já provoca na minha vida.

Sinto-me estranhamente feliz pelas férias estarem a terminar, finalmente vou rever o Guilherme!

O meu coração bate sempre com mais força ao imaginar o nosso encontro. O que terá ele para me dizer de tão importante? Estou ansiosa para que esse dia chegue, finalmente vamos sair os dois juntos e sozinhos. Espero que não demore muito a concretizar-se.

Sinto-me uma tonta, mas estou feliz assim.”


Ana não me saiu do pensamento na noite de passagem do ano, recordo como formulei desejos e até as 12 passas comi, não fosse a superstição dar certo. Tal como nessa noite, os dias que se precederam foram iguais, pensava na Ana vinte e quatro horas por dia e não queria pensar em mais nada, em mais ninguém, em mais nenhuma preocupação.

Assim como ela, estava ansioso para que as aulas recomeçassem e, claro, para que a conseguisse ver mais facilmente.

No primeiro dia de aulas fiz questão de ir à faculdade dela, com um pouco de sorte ia encontrá-la, abraça-la e dizer-lhe que senti de forma inconsolável a sua falta, mas foi um esforço em vão porque não a vi, ponderei telefonar-lhe, mas porque lhe queria fazer uma surpresa, preferi esperar mais algum tempo.

Liguei-lhe nessa noite, e ela disse-me que tinha ido juntamente com a Sandra, à minha faculdade para estar com o Paulo, que era o namorado da Sandra, que me tinha procurado e eu não estava lá. Sorri e disse-lhe, que “era impossível encontrares-me lá, pois eu estava na Faculdade de Direito à tua procura!”. Acabamos por combinar encontrarmo-nos no dia a seguir, para almoçarmos, como era hábito nos últimos tempos.


“Dia 6718 da minha vida (6 de Janeiro)

Vou sair com o Guilherme, não sei onde me vai levar, não sei o que vou vestir mas tenho a certeza que o que me apetecia era no fim da noite ter a minha roupa amassada no chão do quarto, acompanhada com a dele!”

Ao ler isto, simplesmente me deu vontade de rir, era mesmo uma das observações típicas de Ana, ilustrada com a sua sinceridade, com a sua honestidade e com a sua liberdade de complexos.

“Dia 6723 da minha vida (11 de Janeiro)

Passei estes dias a tentar perceber o que sinto, o que poderei escrever, o que conseguirei escrever, o que se passou, o que se está a passar comigo. Aquele jantar, aquele ambiente, aquele beijo. Foi tudo tão mágico. O Guilherme veio-me buscar a casa, entrei no carro e tinha uma simples rosa sobre o meu banco. Ele pegou nela para eu me sentar e ofereceu-ma, disse que era para me ir habituando. Fiquei sem palavras e ansiando para que tudo continuasse assim, pois ainda agora tinha começado e já tinha sido tão bom.

Levou-me até um restaurante junto ao mar, situado na cidade de Espinho, sentamo-nos numa mesa ao centro, um lugar calmo, relaxante e que parecia desenhado por um poeta de sonhos.

Falamos sobre amores, desamores, falamos sobre o que considerávamos uma vida a dois, o que devia ser uma relação e falamos finalmente sobre nós.

No fim, e antes de nos levantarmos para sair do restaurante, ele tocou-me nas mãos, pegou-me pelos dedos e, perguntou-me se queria partilhar com ele o espaço que a vida dele tinha vazio.

Permaneci em silêncio, e se não fosse estar escuro, tinha-se notado que fiquei corada, fiquei petrificada, simplesmente, fiquei sem reacção. Não respondi por palavras, levantei-me aproximei-me dele, abracei-o, senti o calor do corpo dele junto ao meu e derreti-me nos lábios dele. Foi tão bom!!!!”


Palavras para que? Não poderia ter melhor resposta, o teu beijo, foi a resposta mais doce, a mais desejada e mais esperada que alguma vez poderia esperar.
Na manhã seguinte levantei-me mais cedo que o costume, sentia-me cheio de energia, a vontade de estar contigo era tão forte que não havia sono que me amarrasse à cama.
Senti-me como um miúdo de 15 anos, queria estar no meu melhor, vesti os meus jeans preferidos, aquela camisa que me foi oferecida pela Amélia no Natal, quase entornei um frasco de perfume, excepcionalmente coloquei gel no meu cabelo, e enquanto me preparava, ouço em tom de gozo: “onde é o casamento” eram os meus colegas de casa, incrédulos com o que viam não paravam de rir. Até que o Alcino, poeta lá de casa, recitava poesias de Amor, estaria também a gozar com a minha cara?!?! Nada me importava… sei que nos próximos minutos estaria com Ana, e isso sim era o importante!

“Dia 6724 da minha vida (12 de Janeiro)

Hoje comecei o dia da melhor forma, fui ter com o meu amor logo pela manhã. Encontrámo-nos numa pastelaria perto da minha faculdade. Por todos os sítios que passávamos o rasto do perfume do Guilherme ficava... acho que exagerou um pouco. Deu-me uma enorme vontade de rir que quase não conseguia controlar, quando reparei que nas suas calças tinha a berguilha aberta, e de onde sobressaíam uns corações vermelhos num fundo branco dos seus boxers. Tão aprumadinho, mas algo lhe escapou… não tive coragem de lhe dizer que tinha os seus meandros quase à vista de quem quisesse espreitar.

Esperei ansiosamente para que as aulas terminassem, tínhamos combinado encontrar-nos no final do dia.

Começo a sentir que já não consigo passar os dias sem o ver. O desejo de estar com ele aumenta a cada minuto que passa.

A caminho de casa, senti o Guilherme mais atrevido, disse algo que não entendi… ou quis não entender. Convidei-o a entrar, estivemos um bom tempo aqui no meu quarto, deitados, um ao lado do outro ao som de uma música, e íamos trocando carícias e beijos apaixonados. Um fogo enorme se abateu sobre nós.”


Sinto uma inquietação dentro de mim, misturada com desejo, ao recordar cada um destes momentos. Naquela noite foi enorme o desejo que senti, o desejo que os nossos corpos se fundissem num só… que o amor que sentíamos fosse além daqueles olhares, daqueles, beijos, daqueles toques, que se tornasse numa louca noite de amor. Mas apesar deste enorme desejo, senti um súbito medo e não quis arriscar.
Que terá pensado Ana!? Sinto-me ansioso…….será que ela o escreveu!? A minha pulsação está cada vez mais forte, mas não consigo parar de ler.

“Dia 6724 da minha vida (13 de Janeiro)

3:16 Da manhã, não consigo dormir!
Hoje algo estranho estava entre nós... trocávamos olhares profundos como se estivéssemos a ler os pensamentos um do outro, as palavras quase não saíam. Isso incomodou-me... Será que ele se apercebeu da minha enorme vontade de me entregar!? Será que o desiludi!? “

“Dia 6731 da minha vida (20 de Janeiro)

Hoje não paro de pensar em ti, queria ter-te aqui!
O desejo de te ter é cada vez maior, até nos meus sonhos estás presente... Será normal o que estou a sentir!? Mas não paro de pensar como será fazer amor! Tenho a certeza que é a ti que me quero entregar.”

Sentia-me tão apaixonado, desejava tanto ter o teu corpo para mim, que não conseguia entender porque ficava bloqueado quando estávamos juntos mais intimamente. Era a minha primeira vez, não queria que falhasse nada, queria que fosse o momento mais especial e mais mágico das nossas vidas. Sentia que o desejo era mútuo, mas Ana era tímida, não dava o primeiro passo, e eu tinha medo que ela me interpretasse mal.

Embrenhado na leitura das nossas vidas, ouço o despertador, apercebi-me que está na hora de levantar e eu ainda nem dormi… apreço-me a preparar tudo para mais um dia de trabalho, mas saio de casa já a pensar na hora em que me vou sentar “ao lado de Ana” para reviver a nossa história.

Os miúdos já dormem… e eu já viciado neste diário abro-o e continuo.

“Dia 6731 da minha vida (20 de Janeiro)

Hoje não estive com Guilherme, amanhã vai ter exame, mas ligou-me. Estivemos uma hora e tal ao telefone, mostrou-me o quanto me desejava. Quando desliguei não sei explicar o que senti, mas onde estava, fiquei.

Deitada na minha cama fechei os olhos, e comecei a imaginar como seria estar com ele aqui.Com as pernas entreabertas comecei acariciar-me, o calor ia aumentando e a roupa subitamente desapareceu, sentia os meus mamilos a endurecerem, cada vez a ficar mais húmida. Como queria sentir-te dentro de mim…”


Sinto-me a invadir a tua privacidade! Mas não consigo parar de ler. Não estou surpreendido, e sinto uma imensa vontade de também fechar os olhos e tocar-me, e imaginar que estás aqui, tal como o fazia antes de te ter.

“Dia 6754 da minha vida (11 de Fevereiro)

Hoje fiz amor com o Guilherme! Por mais que tente é difícil descrever tudo o que senti. Foi lindo, foi maravilhoso, foi intenso.

Toda a tarde estivemos em minha casa, esteve um dia, em que não se podia andar lá fora, choveu a cântaros mas o som da chuva era a valsa que nos embalava naquele momento.

Com as almofadas espalhadas pelo quarto, com todas as velas que existiam acesas, criou-se um ambiente místico. Os beijos tornaram-se cada vez mais envolventes, os toques cada vez mais atrevidos, um arrepiozinho no estômago estava a ser constante em mim, uma sensação estranha que não me era desconhecida, mas mais forte.

Guilherme olhou-me fixamente com um ar de apaixonado e tímido ao mesmo tempo, e sem dizer nada começou-me a desabotoar a camisa que tinha vestida, ao mesmo tempo ia-me beijando cada parte do meu peito que se descobria com o abrir de um botão e depois outro e outro, e eu sem qualquer medo ou dúvida retribuía cada gesto, cada beijo, cada carícia. Comecei a tira-lhe a camisola, e quando senti o peito dele nu junto ao meu, a vontade de o abraçar e de não mais o largar era cada vez mais forte. Continuamos a enrolarmo-nos e no envolvente deste amor, toquei-o e reparei no tamanho, para mim assustador, do seu membro, e sem reflectir sequer, comentei para comigo mesma, mas em voz alta, do que seria experimentar aquilo! O que provocou uma súbita gargalhada, que nos ajudou a descontrair mas não conseguiu parar a excitação que sentíamos naquele momento.

Senti-me envergonhada quando o Guilherme me tocou ao mesmo tempo, com uma mão no seio e outra a acariciar o meu clítoris. Mas logo essa inibição desapareceu, cada vez mais me sentia solta e louca de desejo. Senti o meu corpo a arder por dentro e cada vez mais húmida, de tal forma húmida que parecia que tinha virado um balde de água quente em cima de mim.

Estava a sentir-me mulher, desejada, amada…

Colocou um preservativo, momento estranho esse, mas mais valia prevenir que depois remediar. Recomeçamos com os beijos, com os toques, e eu não percebia porquê, mas ele não parava de tremer, mas tão cuidadoso como os seus toques, penetrou-me lentamente. Agarrei-o com força, e baixinho fui-lhe dizendo ao ouvido – cuidado amor! Com uma mistura de prazer e dor deixamo-nos levar. Ele estava por cima de mim, com as mãos dele entrelaçadas nas minhas, cada vez mais me apertava com força, à medida que os nossos corpos balançavam um no outro, a minha respiração tornou-se cada vez mais ofegante, apetecia-me gritar, mas não sei se devia, mas deixei de controlar o meu corpo, tudo parou, e eu gemi com todo o prazer.

Guilherme possuído pela sensação, estava constantemente a mudar de expressões como quem estava a sofrer, mas de súbito ele também gemeu alto e caindo sobre o meu corpo, abraçou-me com toda a força, e eu percebi que ele se tinha vindo. Cansados e ainda alucinados com o momento, ficamos calados de mãos dadas por breves instantes.

Guilherme delicado com sempre, pediu desculpa pela inexperiência dele. Foi quando percebi que tanto eu quanto ele, fomos os primeiros um do outro. Mas Guilherme não tinha que pedir desculpas, foi perfeito!!! E a vontade de o fazer de novo é enorme. Amo-o e não tenho dúvidas!”

O seu diário estava repleto deste tipo de descrições e memórias, estava cheio de dúvidas e de certezas, mas estava cheio de carinhos e de amor.

Continuei a lê-lo de forma voraz, quase não conseguia dormir, era tão grande a vontade de o ler, de descobrir mais sobre Ana, pois digo que descobri mais agora sobre ela, agora que ela não está comigo, do que, quando ela estava sempre a meu lado.

O seu livro terminara de uma forma intrigante, pois dizia que “um volume passou, outro se avizinha, não sei quando terminará, mas o presente e o passado, para sempre ficará. (Volume I)”

Decidi procurar nas coisas que Ana tinha guardado desde sempre no sótão. Encontrei uma série de livros, de documentos, de folhas, de caixas, de caixotes. Num deles existiam uma série de livros todos ordenados e amarrados entre si.

Reparei que era o conjunto de todos os seus diários, começava os tinha começado a escrever até aos seus últimos dias. Nesses livros estava a sua vida, quer a profissional, quer a pessoal, tinha por hábito descrever o decorrer dos seus processos, o decorrer da sua vida, o decorrer dos seus planos e dos seus sonhos.

Começava exactamente no dia em que fazia 13 anos. E começava como sempre com a célebre frase “Dia 4748 da minha vida (dia 15 de Agosto) ”.

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Capitulo VI

Quando acordei daquele sonho, tinha o meu corpo todo molhado, pareceu-me tudo tão real.... Mas mais uma vez tinha acordado e Ana não estava ali.


Fiquei a pensar na nossa viagem para a Austrália. Tínhamos sonhado tanto com ela. Era a lua-de-mel que nunca poderamos ter, íamos para um sítio mágico onde as nossas almas se entregariam ao sabor do vento, à esperança de nunca terem de se separar.

Quando casámos Ana já estava grávida, e Ana foi aconselhada a não fazer uma viagem tão longa e cansativa. Depois as crianças nasceram, os cuidados que tínhamos e queríamos ter com elas nunca permitiram que essa viagem fosse feita.

Este era o ano certo para a fazer, os miúdos já suportariam a nossa ausência, mas acho que acima de tudo nós já conseguíamos estar longe deles por algum tempo, pois até aqui nunca nos quisemos separar deles!

Assim que soube da viagem, Amélia ofereceu-se para ficar com eles, e disse que não iria aceitar que os deixássemos com mais ninguém. Eles também eram novos para ir connosco, portanto foi uma decisão que nos agradou a ambos, tanto porque Amélia era a pessoa em quem mais eles confiavam, e em quem nós poderíamos acreditar que seriam uns deuses nas suas mãos.

Uns dias antes da nossa viagem, estava no hospital e ouço o meu telefone tocar e uma voz do outro lado, era a Ana.

- Amor, a que horas sais? - o meu cansaço que era evidente, transformou-se num enorme sorriso.

- Saio às 20h, hoje tenho consultas, mas porquê? - Interroguei-a eu intrigado, pela estranheza daquela chamada.

- Eu vou-te buscar, tenho uma surpresa para ti. - disse ela libertando um breve sorriso.

Eram 20h, nem mais um minuto e volta a tocar o meu telefone, mas estava ocupado e simplesmente vi que era o número de Ana, percebi que já deveria estar à minha espera.

Acabei as consultas, tiro a bata, e como que adivinhando que acabara o trabalho, Ana perguntava-me se demorava para sair.

Saí do hospital, e vejo o carro dela estacionado mesmo ao lado do meu. Entrei no carro e, como se não nos víssemos há meses ou anos, caímos nos lábios um do outro. - Adoro recordar o sabor da sua boca, o cheiro do seu perfume, o calor dos nossos beijos. - Ela, sem me dizer o porquê de tanto mistério em relação ao rumo que tomávamos, colocava a nossa música no rádio.

Seguia silenciosamente em direcção a Sul, não me dissera para onde seguíamos, simplesmente, pedira-me para não lhe fazer perguntas sobre o nosso destino. Com uma curiosidade estampada no rosto uma questão me surgiu.

- Onde estão os meninos?

- Em casa com a Amélia e com o Bernardo, ficaram bem cuidados, não te preocupes, simplesmente eu tratei de tudo! - disse ela com um ar de certeza e confiança.

A viagem decorria e íamos conversando sobre o trabalho, sobre a escola das crianças, íamos partilhando o nosso dia, as nossas preocupações, quando...

- Mas... - disse eu quando me apercebi que tomávamos a direcção de Espinho - sinceramente, o que vimos aqui fazer?

- Há muitos anos que não vinhamos aqui! - respondeu ela com um sorriso.

Mais dois minutos de viagem, até que estacionou o carro. Recordava aquele sítio, tinha sido o sítio onde tinhamos estado no dia em que a consegui convencer a sair comigo, tinha sido naquele sítio que tinha conseguido roubar-lhe o nosso primeiro beijo.

Entramos no restaurante, sentamo-nos numa mesa no meio da sala, uma mesa que tinha uma decoração muito simples. Os nossos dois pratos, os talheres, dois copos e um guardanapo com duas letras um G e um A sobre cada prato. Ao nosso lado estava um aquário, onde estavam uma série de peixes.

Um senhor muito simpático dirigiu-se a nós e rapidamente disse a Ana que o nosso pedido estava pronto, se poderia começar a servir. Ana pediu para esperar mais uns minutos e que depois poderiam trazer.

Cruzando as mãos em frente da boca, esperei que ela me dissesse o porquê de tanta surpresa, o porquê daquela visita inesperada, aquele sítio tão mágico para nós.

- Primeiro este foi o local do nosso primeiro encontro a sós! - disse ela com um brilho nos olhos. - Em segundo porque foi aqui que eu senti que tu eras a tal pessoa, aquela pessoa que me fazia corar, aquela pessoa que me fazia tremer, e foi aqui que encontrei a felicidade, e a minha felicidade és tu!

- Eu sei, sim eu recordo-me que foi aqui que nos beijamos, eu recordo-me que foi aqui que pela primeira vez senti o doce sabor dos teus lábios, foi aqui neste mesmo restaurante, nesta mesma mesa, que o meu sonho começou a ser concretizado. - disse eu pousando os braços sobre a mesa para conseguir tocar as suas mãos.

Entrelaçando os dedos dela nos meus continuou. - Mas o facto de estarmos aqui não é só por ter sido neste sítio, eu tenho uma coisa que quero que tu vejas. E achei que este seria o local ideal para que isso acontecesse.

Coloquei um ar apreensivo, um ar admirado - Mas, uma coisas que não saiba, meu amor? Mas isso será bom ou nem por isso?

Com um sorriso apaziguador, como só ela tinha, Ana quebrou a momentânea ansiedade – Tonto. Quero revelar-te o meu cantinho secreto. Nunca te disse isto, mas, mantenho um diário desde miúda.

Surpreendido, mas aliviado, olhei-a nos olhos. Sabia que era algo de muito importante para ela. Era como que um reforçar da nossa relação. O quebrar de qualquer barreira.

Levantou-se da sua cadeira, já com o diário na mão, e entregou-mo no enlace de um beijo. Quero que o leias. – Disse ela. Quero que saibas tudo o que senti desde que te conheci.

Sentou-se novamente lançando-me um olhar terno. - Queres mesmo que o leia? – Perguntei com um ar de preocupação. - Não estás a testar-me?

- Não, tontinho, não quero testar-te de forma alguma. Lê! Por favor…

Neste momento chegou o empregado para nos servir. – Os senhores desejam que sirva o jantar? – Estava tão surpreso com a situação que me limitei a gesticular qualquer coisa com as mãos, que nos concedesse um pouco de tempo a mais… o rapaz compreendeu, anuindo com a cabeça, afastando-se.

- Posso ler tudo?

- Podes. Nesse volume que trouxe estão apenas as minhas memórias do tempo em que nos conhecemos.

- Queres dizer que não é tudo?

- Claro que não. Teria sido uma vida muito monótona se estivesse tudo num só volume! – Disse ela com um ar trocista.

- Nunca pensei, que ao fim destes anos, ainda tivesses segredos para mim.

- Todos nós temos o nosso lugar secreto. Queres-me convencer que não tens o teu?

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Capítulo V

Eu tinha sete anos quando, fomos de férias pela primeira vez para o Alentejo, iamos para casa de uns amigos dos meus pais que moravam em Évora.
Lembro-me da viagem, demorávamos uma eternidade a chegar lá. Viajamos durante a noite, saímos de casa, deveriam ser umas quatro horas da manhã.
A minha irmã dormia recostada no banco de trás. A minha mãe passava-me a mão pelo cabelo ao mesmo tempo que me contava uma história de quando era jovem. O meu pai agarrado ao volante, lá abria o vidro de vez enquando para fumar mais um cigarro.
O meu pai, André de seu nome, era um homem alto, cabelo castanho, olhos grandes e expressivos. Uma pessoa rígida, obstinada por regras, conservadora e metódica mas que acima de tudo adorava a nossa família, fazia tudo para nos proteger e para nos manter sempre unidos.
A minha mãe, que se chamava Lúcia, tinha cabelos claros, olhos verdes, umas mãos de donzela, uma pele macia e clara, e um coração de ouro. Adorava cuidar dos seus filhos, tinha largado tudo por nós, deixou de trabalhar aos vinte anos, assim que a minha irmã Amélia nasceu, só para conseguir ter tempo para cuidar dela da forma que ela achava a correcta.
Quando ao passarmos na região de Coimbra o meu pai, encosta o carro, e acorda-nos com muito carinho para vermos o nascer do sol.
O céu parecia mudar de cor a cada segundo que passava, ouvia-se o cantar dos pássaros que voavam numa dança desenfreada. Tinha sido o primeiro nascer do sol a que assistira. Era mágico, era belo, até mesmo arrepiante, e como que se de um momento único se trata-se, como que se não houvesse amanhã, um colo da minha irmã e um sussurro no meu ouvido diziam – O mais importante não é esperarmos que o sol nasça, é que ele nasça para todos, e sempre com um enorme brilho.
Palavra que ainda me faz pensar, mas que hoje compreendo, com a experiência da vida, com o que conheço de mim, mas acima de tudo com o que conheço do mundo.
No momento em que o meu pai nos acordou, interroguei-me do porquê de termos parado. Mas de seguida com a perspicácia de um miúdo de sete anos, percebi que teria um motivo especial, percebi que com o nascer do sol a magia da vida e do amor existiam, percebi ao sentir o abraço ternurento que recebi da minha irmã, percebi ao ver o carinho no toque apaixonado dos dedos dos meus pais.
Seguimos viagem, a minha cabeça estava a ser bombardeada de perguntas, pois não sabia o que pensar, não sabia o que dizer, não sabia o que perguntar.
O resto da viagem foi realizada em silêncio, como se estivéssemos todos ainda a ver o nascer do sol, como se a brisa da manhã nos tivesse selado a boca e aberto os corações. Ninguém sentia sono, ninguém queria saber de dormir, ninguém queria perder a primeira palavra dita depois daquela experiência maravilhosa. Até que a Amélia, agarra-me a mão e coloca um sorriso nos lábios.
– Então amor como foi ver o nascer de um dia? O que sentiste? Conta…
Fiquei sem palavras, com uma vontade de dizer tudo aquilo que sentia, mas simplesmente tive coragem e força para dizer – UAU!
Uma gargalhada dentro do carro. Imagino que tenha sido, porque ninguém espera uma resposta destas de uma criança, talvez tenha sido, porque era exactamente isso que eles estavam a pensar também naquele momento.
E, logo em seguida, como se o momento voltasse a acontecer, como se o sol tivesse voltado a nascer, o silêncio voltou a ser a palavra.
Chegamos a Évora era quase meio-dia. Um calor abrasador, os amigos dos meus pais esperavam-nos na entrada da cidade e conduziram-nos até casa deles, onde ficamos nos dias que se seguiram.
Nessa tarde ficamos a descansar em casa do sr. Rui, ele tinha dois cavalos, e prometera-me que me ensinaria a montar, se os meus pais assim o permitissem.
Com um olhar de reprovação, ou apreensão, Amélia sorriu-lhe antes de lhe perguntar com tom preocupado. – Não será perigoso?
– Prometo que não! – Disse o sr. Rui com ar confiante.
– De qualquer forma depois vemos se podes aprender ou não, depende de como te portares! – Respondeu o meu pai ao acender mais um cigarro.
Nos dias seguintes, andamos a conhecer Évora, recordo-me das muralhas, que na sua parte interior conservavam uma série de monumentos antigos, e uma praça, à qual a minha irmã chamou de “praça do Giraldo”, e aí me contou alguma da história da cidade.
De regresso a casa do sr. Rui lembro-me de comer uma sopa de cação que nunca mais me irei esquecer, umas migas e açorda, e uma encharcada na sobremesa.
Brincava no átrio daquela casa, quando, como todos os dias acontecia, ao serem 22h o meu pai me foi chamar para ir para a cama. Com ar contrariado, mas obediente retorqui. – Não poderei ficar mais uns minutos, eu estou de férias, amanhã não tenho escola. – Mas como de costume, tive de ir descansar, pois com mais uma explicação a minha mãe, que viera também chamar-me para me ir deitar. – Os meninos têm de se deitar cedo, pois têm de descansar para serem grandes e fortes, mas acima de tudo para ser felizes.
E com um beijo me deitei, aconchegado pelas mãos da minha mãe numa cama acabada de fechar.
Lembro-me de sentir fechar a porta, ao mesmo tempo que lembrava o que tinha acontecido naqueles dias. Não conseguia dormir, dava voltas e voltas na cama, e lembrava o nascer do sol, as palavras que Amélia me dissera naquele momento.
Acordo de um sonho, soluçava e não sei porquê, levanto-me e procuro uma luz. Abri a porta e segui o caminho das vozes, onde encontrei o meu pai e o sr. Rui a falarem de um filho, que não sabia da história, que não sabia nem tão cedo saberia. Era novo demais para perceber o que se tinha passado, e as pessoas também não sabiam.
Voltei para a cama levado pela mão da D. Rute que vinha da cozinha, com um ar cansado de quem tinha estado a arrumar tudo até aquela hora, e me encontrara ali, com os pés sem chinelos em cima do chão frio e de tronco nu.
Os dias foram passando a correr, e não me apetecia sair dali, sem que me fosse permitido sentar em cima daquele cavalo, Lasão de seu nome, sentir a sensação de estar em cima de um animal tão imponente, com umas crinas tão bem penteadas.
Na manhã que viemos embora, finalmente, consegui que esse meu sonho de quinze dias se concretizasse. Levado pelo filho da D. Rute, sentei-me em cima do cavalo mais maravilhoso que já tinha visto, aquelas passadas calmas e elegantes, aqueles movimentos suaves e delicados.
Fiquei a adorar o Alentejo, as suas terras, as suas gentes, o seu perfume e a D. Rute, senhora que trabalhava naquela casa enorme, e os seus maravilhosos cozinhados.
A saudade, do Alentejo já apertava, mas a vontade de reencontrar Bernardo que me tinha prometido uma viagem de barco quando chegasse era tão grande que adormeci para a viagem passar mais depressa.
Estranhei o facto de a viagem ter corrido tão silenciosa, mas mais tarde ao chegar a casa, quase sem parar e sem o meu pai ter dirigido uma palavra para com Amélia, eu me apercebi que algo estaria errado.
O meu pai acusara Amélia de ter permitido o interesse de Rúbem, filho da D. Rute, por ela. Dizia ele que ela devia ser uma mulher já bastante responsável e não poderia deixar que esse tipo de insinuamentos acontecesse por parte de nenhum homem.
Amélia que amava Bernardo, que amava e não queria pensar em mais nenhum outro homem, não via, nem poderia ver qualquer problema em conversar com outras pessoas, com outros homens.
A minha irmã tinha 23 anos e já terminara o curso, estava a dar aulas numa escola em Vila Praia de Âncora, e decidiu que estava na altura de sair de casa e ir viver para lá, assim que começasse o novo ano lectivo.
O meu pai que sempre quis manter a família unida, lutou para que isso não acontecesse, mas a minha irmã estaria sempre perto de casa e prometeu vir a casa todos os dias, porque o seu coração estava ali, e estaria sempre.
Não me lembro de Amélia ter falhado um dia ao seu compromisso, e de não ter vindo todos os dias, dar-me um beijo e ver os meus pais.
Mas guardo a carta que ela escreveu, e colocou em cima da mesa em nossa casa, na primeira semana que se encontrava a viver sozinha.

“Minha querida família.

Aqui estou eu, com uma caneta numa mão e um lenço na outra, para que as lágrimas que tombam dos meus doridos olhos de tanto chorar não manchem esta carta, pois o que tenho para vos dizer é importante demais, mas escrevo porque não tenho coragem para vos dizer.
É difícil estar longe, é difícil não poder ter quem se ama, é difícil largar alguém, mas seria mais difícil se soubesse que não vos poderia abraçar nunca mais.
Quero que saibam que a vossa presença, a vossa ajuda e o vosso amor é o que de mais importante tenho na vida. Vocês são os meus ídolos, quem nunca me abandonou, quem nunca deixou de me proteger, em todos os momentos e alguns, muito difíceis para todos.
A distância que nos separa, simplesmente separa os nossos corpos, separa os nossos olhares, mas nunca separará as nossas almas, as nossas cumplicidades e as nossas memórias.
Voltarei sempre, sempre que quiser, sempre que precisarem, sei que vocês têm uma porta aberta, sei que vocês nunca trairão a minha confiança, sei que vocês cuidarão de mim no dia em que eu estiver mais necessitada, mas sei que cuidarão dos meus sempre que eu não esteja presente e sempre saberão ser felizes e ensinar o Guilherme a lutar por ser feliz e, obriguem-no mesmo se ele não quiser.
Não sei se terei forças, para lutar assim como vocês fizeram, não sei se suportarei tanto quanto vocês suportaram, mas sei que confio em vocês mais do que em mim própria.
Obrigado por tudo, meus pais, minha família, meus amores. Obrigado por fazerem de mim quem sou, obrigado por me fazerem acreditar que vale a pena viver, que vale a pena ser feliz, mas acima de tudo que vale a pena amar.
Obrigado...
Amélia”

domingo, fevereiro 12, 2006

Capitulo IV

-Papá, nunca mais nos contaste a história da Ana!!

Foram estas as palavras que ouvi da minha filha Carolina, em tom de reclamação, quando vinha com o seu irmão depois de mais um dia de brincadeira frenética à beira mar....

Com os corpos cobertos de areia e todos transpirados os meus filhos eram, mesmo assim, os meninos mais bonitos e felizes do mundo, Deus tinha-nos dado o privilégio de ter 2 gémeos lindíssimos, Carolina com os seus enormes olhos verdes, os seus luminosos caracóis loiros e uma pele de tez muito clara, tal como um anjinho, é em tudo igual a minha amada Ana, por sua vez João também com uns enormes olhos verdes, mas o cabelo um pouco mais escuro, mais parecido com o meu, tem uma pele muito mais morena. Eu e a Ana na mais sincera das brincadeiras costumávamos dizer que, como nem os pais dela, nem os meus tinham tons de pele tão carregados, como o do João, que provavelmente e apesar de os termos visto nascer ele poderia não ser o nosso filho, e ter sido trocado na maternidade.

-Têm razão, vão tomar um banho que eu logo vos conto mais um pouco da história, imediatamente a seguir ao jantar.

E ali fiquei eu a vê-los entrar em casa de rompante como se a história não pudesse esperar nem mais um segundo. Não foram necessários nem 10 minutos, após o jantar, para termos a cozinha arrumada e estarem os dois sentados nas cadeiras de baloiço que tinham no seu quarto, com os olhos muito despertos, apesar do cansaço estampado nos seus rostos...

- Queremos o resto da história Papá.... Tu prometeste!!!

- Então, vou contar-vos mas ouçam com muita atenção.

E comecei então a recordar toda a minha história com a Ana...

“Ana, era uma rapariga de corpo delgado, que parecia esculpido por mão de ouro do melhor dos escultores, como uma obra única que cresce mesmo à nossa frente, e esta, estava a aparecer mesmo ali, como um sonho que se tornara realidade. Amedrontada, tímida, calma, era dona de um brilho especial. De cabelo claro, como um raio de sol que trespassa as nuvens num céu nublado, tinha estampado no rosto a beleza de um arco-íris. Possuía um sorriso suave como uma brisa, encantador como o som de uma flauta mágica. Com sobrancelhas finas, pestanas longas, lábios flamejantes que torturavam quem a olhasse, mesmo sendo possuidor dos mais nobres sentimentos.

Ana era linda, linda como só uns olhos apaixonados conseguiam ver, maravilhosa como um coração enlouquecido conseguia sentir, brilhante como um diamante em bruto aos olhos de um joalheiro.

Ela deixou-me estupidamente estático, com o encanto que me absorveu a partir daquele momento em que a vi.

Estava vestida de preto, com uma camisa vermelha desapertada distraidamente pelo terceiro botão. Por baixo desenhado, pelo sol do verão anterior, o contorno de um bikini ousado.

Não consegui durante todo o dia livrar-me daquela imagem provocante, não consegui, mas também não queria esquecer, queria descobrir o que ela teria para mim, o que ela teria para me dizer, queria descobrir porque é que ela aparecera na minha vida.

Então nesse mesmo dia, procurei-a pela faculdade, perdido, enlouquecido, dominado, pelo desejo de a reencontrar. Perguntei se alguém a conhecia, quem era, de onde era, que idade teria aquela pessoa que me ocupara o pensamento, aquela pessoa que me entristecera por não a ter comigo. Ninguém, absolutamente ninguém, me ajudou e me aliviou daquele sofrimento que nos atinge e nos destrói por dentro como uma faca que nos corta.

Sabia simplesmente o nome dela, Ana, nunca mais me esqueci, nunca mais me quis esquecer… mas também nunca mais me sentiria feliz se o fizesse.

Nessa mesma tarde, quase noite entrei no meu quarto exausto de tanto procurar, com o coração vazio, com as mãos cheias de nada.

Deitei-me sem jantar. Olhei as paredes vazias, demonstravam um ambiente frio, mas esperavam, tal como eu e o meu coração, que se enchessem de memórias, de projectos, de mensagens. Das paredes brancas sentia-se o cheiro da tinta, das portas o cheiro a verniz, e no meu pensamento só existia um nome, um rosto, um gesto, um perfume.”

De repente, olho para João e Carolina e como duas crianças que adormeceram na mão de um anjo, embalados pela história que lhes contava, dormiam com um ar de alegria estampado no rosto. Levantei-me, peguei neles no meu colo e coloquei-os na cama, tapei-os e despedi-me deles com um beijo, exactamente o mesmo gesto que Ana fazia todos os dias antes de ir dormir, desliguei a luz, acendi o barco luminoso que Bernardo lhes tinha oferecido, e retirei-me.

Deitei-me na minha cama, abracei a almofada onde Ana descansava seus lindos cabelos e fechei os olhos. Nesse mesmo momento uma lágrima rolou pela minha face. E, adormeci.

Pouco tempo depois ouço um barulho estranho, como um leve sussurro, abro os olhos, e vejo ao fundo da cama, com o mesmo encanto do primeiro encontro, a doce Ana.

Esfrego os olhos e ouço-a dizer, por favor não digas nada, simplesmente vamos aproveitar este momento, como o fizemos na primeira vez.

Reparo, entretanto, que a vela que eu lhe tinha oferecido no nosso primeiro encontro estava acesa junto à janela, o que fazia com que lhe realçasse ainda mais a beleza dos olhos e do cabelo.
Eu, sem saber o que fazer, o que dizer, o que sentir, levanto-me, dirijo-me a ela, e quando as suas mãos tocam o meu cabelo, sinto aquele perfume que ela usava e que sabia que me enlouquecia, e entrego-me ao calor dos seus lábios, ao sabor da sua boca, foi um beijo como nunca tinha sentido, um estranha sensação de loucura.

Ao mesmo tempo que nos beijávamos, as nossas mãos como que a redescobrir os contornos do corpo um do outro, iam tornando a roupa que nos vestia cada vez menos. Ela envergava, um vestidinho preto que eu adorava, e que eu lhe pedi vezes sem conta para ela o usar. Eu estava a dormir de pijama tapado até à cabeça, pois o frio começava a fazer-se sentir.

Deitados naquele ninho de amor, o calafrio do primeiro toque, a vergonha de nos sentirmos a ser despidos, espelhava-se nas nossas faces rosadas.

Um respirar junto ao ouvido, uma língua que passava num pescoço, as mãos que viajavam pelos dois corpos ardentes, faziam esquecer tudo o resto e simplesmente duas palavras se ouviam, ao ritmo do baloiçar da chama da vela acesa, “eu amo-te.”

Olhar novamente os olhos de Ana, fazia-me acreditar que a felicidade existe, que a beleza de uma pessoa não está só no que aparenta ser, está naquilo que conseguimos ver muito além da realidade. Os seus olhos verdes como um relvado diziam-me para lutar e continuar a amar.

O desejo aumentava e a roupa desaparecia, a beleza do lindo corpo de Ana era cada vez mais realçado pela escassa luz da vela aromatizada que tornava o ambiente cada vez mais envolvente.

Os seus belos seios estavam de volta, Ana sabia que ficava louco de paixão ao senti-los esmagados contra o meu peito, a vontade de os beijar, de os trincar estava a tornar-se incontrolável.

A audácia que Ana sempre teve, estava de volta, e cada vez mais me sentia louco de paixão com o leve toque dos seus cabelos a percorrer todo o meu corpo, acompanhado pelo deslizar das suas unhas sobre as minhas costas e ao mesmo tempo que me acariciavam, me feriam e provocavam-me gritos de desejo.

Novamente tive a plena noção que a mulher que estava ali comigo, que ia gemendo cada vez mais de prazer era a mulher da minha vida, a mulher que eu escolhi para amar por completo, não tinha só a alma de Ana tinha o seu corpo, tinha-a completa ali naquela noite de amor, sexo, prazer que nos estava a levar à loucura.

Os nossos corpos já sem roupa, molhada pelos suores de desejo, húmidos com o calor da paixão, desfrutavam da saudade que nos consumia.

Sentir o meu corpo e o dela como um só, enlouquecia-me, aos poucos íamos sentindo os nossos corpos a tremerem de exaustão, a explosão de amor e prazer emanava por todos os poros do nosso corpo e foi então, que ao atingir o clímax a abracei com toda a minha força, puxando o seu corpo para mim, não conseguindo controlar um súbito desejo de dizer tudo o que sentia, era um desejo que me vinha da alma, do corpo, bem do fundo do meu ser… e gritei…

Amo-te, é tão bom ter-te de volta!

Foi com esse grito que ecoava, que me deparei que tudo não tinha novamente passado de um sonho, abri os olhos e apenas eu e a almofada de Ana estávamos ali…

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Capitulo III

A menos de 30 km daqui Bernardo, olhava incrédulo a terra que deixara ainda não tinha feito 2 meses. Inquietavam-no as palavras proferidas por Amélia aquando do último encontro. Agora a face morena marcada pelo sol e pela brisa gelada do mar do norte e as mãos marcadas pelas redes ásperas e salgadas, pareciam fazer esquecer a dor do último encontro, mas aquele pedaço de papel que agora amarrotava entre as mãos, e a terra que avistava sob o deslizar calmo do barco de arrasto, tornavam aquele momento ainda mais difícil, quase que insuperável.
Fazia quase dois meses que saíra do porto de Viana a bordo do navio em que agora regressava. No dia em que partira tinha a certeza que aquele era o pior dia da sua vida, no entanto, agora a perda da única pessoa que o parecia compreender, e a angustia dos últimos tempos, tornavam o regresso ainda mais difícil.
A morte de Amélia embora o entristecera também o tranquilizava. Agora sabia que os próximos dias podiam ser solitários, mas no final Amélia estaria à sua espera.

Depois de toda a tragédia pela qual eu e Bernardo tínhamos passado eu tinha decidido mudar a minha vida, era necessário tomar uma atitude drástica que me fizesse ganhar coragem para viver de novo.

Peguei nos meus filhos, e optei por mudar de cidade, deixar para trás a cidade onde tudo tinha acontecido, e como sabia que naquele momento já não era eu que precisava de apoio mas sim o Bernardo, mudámo-nos para Viana, terra onde a minha irmã tinha começado a sua vida depois de se casar.

Apesar de terem sido muito felizes, Bernardo e Amélia nunca tinham tido tempo para ter filhos, talvez porque ele era um homem muito ocupado, tinham optado por deixar esse passo da sua vida para mais tarde, sempre o tinha ouvido dizer "quando tivermos um filho deixarei o mar, quero ser um pai a tempo inteiro".

Quando tomei a decisão de mudança só pensava na celebre frase que diz que as crianças são a alegria do mundo, e sem duvida que são, depois que o Bernardo se começou a relacionar com os meus filhos voltou a sorrir, ver os garotos a brincar na areia da praia, a fazer traquinices, deixava-o feliz.


Bernardo foi o verdadeiro amor da minha irmã Amélia, o homem que certamente a faria muito feliz, e fez enquanto as suas vidas se cruzaram, o homem com quem ela fez todo o tipo de planos, construiu todo o tipo de sonhos, mas, infelizmente, as suas vidas nunca os concretizou, pois separaram-se muito cedo, separaram-se porque Bernardo fazia a sua dura vida no mar e ficavam muito tempo sem se ver, mas também porque Amélia, foi trabalhar para Lisboa, com 29 anos, o seu amor, apesar de incomensurável, foi ferido pela distância, mesmo tendo eles, as asas de um cupido esculpidas no coração.

Foram onze os anos que Amélia trabalhou em Lisboa, neste tempo conheceu Antonio, um colega de trabalho, com o qual acabaria por se casar. Depois disso veio para Viana, conseguiu uma colocação no Porto, onde continuou a fazer uma das coisas que lhe dava mais prazer, que a motivava, que sempre quis fazer, ensinar, educar, cultivar, pois era professora de Francês.
António, nunca conseguiu conquistar o coração de Amélia, lutava todos os dias para a fazer feliz, e conseguiu em certos momentos arrancar-lhe um lindo sorriso. Recordo-me de ela me dizer que o António era carinhoso, preocupado e um bom amante, só não tinha a arte nem o engenho para conquistar o seu coração.

Mas, o amor por Bernardo, incendiou o casamento de Amélia, não só porque António foi trabalhar para Timor, mas também porque no dia 5 de Agosto, dia do meu casamento, ela reviu Bernardo, quem já não via, não sabia notícias, não olhava os seus grandes e castanhos olhos passavam quase onze anos.

Naquele momento, Amélia, sorriu, como já não a via fazer há muito tempo, derreteram-se num abraço de saudade, num abraço de amizade e sem dúvida num abraço de amor. Partilharam o passado, recordações, novidades, mas acima de tudo tocaram o coração enamorado e adormecido de ambos.

A partir desse dia, Amélia, que se sentia muito sozinha, perdida, abandonada, pois o seu marido, António, estava em Timor, encontrou o conforto no colo do seu Bernardo, aquele amigo em quem confiava, aquela pessoa que a fazia sorrir, aquela pessoa que a fazia sentir feliz.

Bernardo e Amélia nos últimos tempos, tinham passado a ser mais do que grandes e simples amigos, eles entregaram-se ao calor de uma paixão, de um amor, de uma loucura, obstruída pela incompetência da vida, desviada pelos caminhos tortuosos do pensamento.

Então Amélia, pessoa, sincera e tranquila, que não suportava a mentira, que detestava viver com o peso de quem não é honesto, de quem não tem o coração livre de tudo o que significa amor, respeito e dignidade, não suportou esconder os últimos acontecimentos da sua vida e decidiu abrir o seu coração com António.

Este, dissera-lhe que regressava a Portugal passados três meses, para tratarem de suas vidas, mas que também esperava refazer a sua vida mesmo por lá, pois tinha a certeza que ela seria muito feliz com o Bernardo.
Então, no dia da morte de Amélia, António encontrava-se cá para que ambos acabassem com o que restava das suas vidas em comum, pois tinham decidido terminar com tudo e dar uma oportunidade a ambos para serem felizes.

Mas agora, e principalmente nestes últimos tempos, Bernardo andava estranho, tinha-o ouvido soluçar ao telefone, quando falou de um papel, de algo que tinha encontrado há pouco tempo e desde então o seu olhar transmitia um misto de desespero e alegria.

Naquele papel, amarrotado, que guardava como um tesouro sempre junto ao seu peito, estava a realização de um sonho, um sonho de muitos anos. Estava o que tinha prometido a Amélia, estava o que, junto ao mar iluminados pela imagem da lua reflectida na água, lhe tinha dito na noite em que partira para mais uma jornada.

CAPITULO II

Olhares encharcados de lágrimas, e com um esforço desumano para elas não deslizarem pelo rosto, gargantas apertadas que mal conseguiam respirar, mãos unidas, cabeças caídas sobre o peito, era assim que todos nos encontrávamos no dia em que o seu corpo desaparecia definitivamente do meio de nós.

No meio de tamanha dor, de tanto sofrimento lembrava-me das palavras sábias e maternais que Amélia tinha para comigo.
– Guilherme, acima de tudo respeita-te para conseguires ser respeitado, faz tudo para fazer alguém feliz, pois só assim vais conseguir sorrir a cada dia que passa. Nunca te esqueças que eu te amo e daria a minha vida para te ver sorrir.

Ironia do destino, ou não o que ela me repetia vezes sem conta acabara por se tornar na minha maior dor. Nunca pensei dizer que o maior desgosto não é perder alguém, mas sim, não superar a sua falta.

Estávamos na entrada do crematório, quando descruzo as minhas geladas mãos e as entrelaço nas mãos do João e da Carolina, prostro-me de joelhos no meio deles, suas pequenas cabeças encostam-se nos meus ombros e sorriem-me com uma face meiga e terna de quem é criança, de quem percebe a minha dor e eu a deles.

E, como com 6 anos, não entendemos muito bem estas partidas que a vida nos prepara, João também não estava a entender tudo o que se estava a passar à sua volta, então olha para mim com o seu olhar terno e cheio de duvidas.

- Papá, o que se passa, porque está toda a gente triste, onde está a Tia Mel?

Nessa altura não consigo mais conter as minhas lagrimas, sinto-as a rolar pela minha face, agarro os meus filhos com toda a minha força, como se naquele abraço colocasse todo o amor que sinto por eles.

- A Tia foi fazer uma viagem muito longa, talvez demore muito a voltar...

Fiquei em silencio por alguns segundos, e continuei.

... ou talvez não volte mais...

- Foi para junto da Mamã?

Era esta a pergunta que eu mais temia, um assunto que até àquela altura eu não tinha falado com os meus filhos e que naquele momento de tamanha dor e angustia, João se lembrou de abordar....

Sinto que chegou a hora de enfrentar todos estes fantasmas que me rodeiam, não posso ser tão egoísta ao ponto de criar ilusões dentro dos corações dos meus filhos, eles têm que estar preparados para esta realidade tão cruel, onde somos obrigados a sobreviver, sem que nunca ninguém nos tenha perguntado se queriamos nascer. Concentrei todas as minhas forças em ti, Ana, em tudo o que vivemos e prometemos cumprir, e não sei explicar o que senti mas sabia que estavas presente e finalmente consegui.

-João, Carolina, o papá tem uma história muito bonita para vos contar.

Os olhos verdes e brilhantes da Carolina ficaram penetrados no meu rosto, e com a inocência de criança, gritou.

-Conta papá, conta!

E aquele dia que era de profunda tristeza, acabou por ter um momento de descontração, dei por mim a esboçar um sorriso que desde da tua partida ninguém o tinha visto.

-Era uma vez uma rapariga, doce, bela, inteligente, misteriosa, que recentemente tinha chegado a uma nova cidade.

Quando subitamente sou interrompido.

- Como se chamava a rapariga papá.

Como que por magia, regressei ao passado e tudo o que me surgia na memória parecia real.

-O nome dela era Ana...
Não sei muito bem quais foram as palavras exactas que usei para narrar toda a nossa história, mas sei que a contei de tal forma que fiz Dela a minha deusa, o meu mais que tudo.
Havia cerca de 12 anos que eu a conhecera, por sorte fomos os dois estudar para a mesma universidade, ela para advocacia e eu para medicina (de que me servira estudar medicina, se não a conseguira salvar?!).
Estavamos numa praxe colectiva, e por estranho que pareça, alguém decidiu praxar dois cursos tão distintos no mesmo local.
Recordo perfeitamente os seus olhos verdes - olhos que a nossa filha Carolina tinha iguais - de panico por estar numa cidade totalmente nova onde não conhecia ninguém, procurando desesperadamente o apoio de alguém, Deus quis que os nossos olhares se cruzassem naquele momento e posso garantir que quando a vi pela primeira vez não me ficaram quaisquer duvidas, ela era a minha mulher, era com ela que iria casar, naquele preciso momento tive a certeza que tinha encontrado a mãe dos meus filhos!
Esta foi a parte da nossa história que contei aos meus filhos, com a promessa de que mais tarde acabaria por lhes contar toda a história do Guilherme e da Ana...

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Uma estória em branco - CAPITULO I

Noite calma e silenciosa, somente o perfume da terra húmida se sentia no ar. Passeávamos abraçados pelo canto de uma coruja, olhávamos o horizonte como quem deseja o infinito, falávamos de todas as coisas que são levadas pelo vento.

Éramos felizes.... Naquele momento nada mais tinha qualquer tipo de significado, nada seria capaz de abalar aquela paz interior que nos invadia e que nos fazia acreditar que sim... que realmente os contos de fadas existem... e que nós, sem duvida alguma éramos a prova viva disso. Naquele momento só existia uma dúvida que me invadia o pensamento... Como tinha levado tantos anos da minha vida a encontrar-te, a descobrir o amor, a verdadeira felicidade?! Era tudo tão perfeito... o lugar ideal, a brisa leve do vento, as palavras ditas, o olhar que acompanhava o brilho do luar, o simples toque das nossas mãos que acariciavam as faces um do outro... Estaria a sonhar!? Não!! Era mesmo real, tão real como aquele canto de coruja que nos embalava, o relógio não parou e a coruja cantava...

Guardo tudo isto na minha memória, cada dia que passa te recordo e recordo todos os bons momentos que vivemos juntos, como pôde o destino ser tão cruel para nós? Como pôde arrancar-te da minha vida de uma forma tão cruel, da qual nós não tivemos forma de fugir?... Fazes-me tanta falta, se tu pudesses saber as vezes que penso em ti, a cada dia que passa... mas dou a mim mesmo um último fim, fui e ainda estou a ser escravo do nosso amor, amor que não queres aceitar, que não queres ver...sinto-me frágil, sinto-me perdido e já sem forças para lutar pelo que eu próprio acredito, pelo que eu próprio quero, mas ao Fundo não volto, à escuridão não volto, ao silêncio e ao medo também não volto...Quero um Fim mas quero e acredito num inicio e é neste fim que dou a mim mesmo que vejo e começo um Início....

Quero que a minha vida deixe de ser escrita pelas nuvens, quero o meu sorriso me leve para longe de nós, quero que as tuas palavras ditas outrora sejam feridas jamais saradas no teu corpo, quero ... já não sei se quero ... pois neste momento exijo ser feliz longe de ti, perto de quem me quer, perto de quem me chama, com um chamar amargo de quem não me pode ter.

Acordei, mais uma noite tinha passado, o nosso sonho, sonhado imensas vezes, tinha-se repetido mais uma vez, na minha enlouquecida memória.
Encostado na cama do hospital tinha flashes do que havia sido a nossa história, lembrados pelas fotos que me haviam sido mostradas pela Amélia. Tudo tinha parecido tão real, mas afinal quem era eu?, perguntava-me ao olhar para o espelho após o enxaguar do rosto com o algodão humedecido...

Foi então que percebi, que a minha vida tinha mudado, que o meu ser tinha renascido, uma nova oportunidade de ser feliz tinha surgido na minha vida. Mas como? Será que sozinho consigo encontrar uma solução?
Não consigo explicar como, talvez pela força de querer viver, arranquei todos os fios e agulhas que penetravam o meu corpo, e como que um fugitivo, sai daquele hospital e naquele segundo percebi que tudo ia mudar. Todas essas recordações que tinha do nosso passado deixaram de ser sofrimento e deram lugar a um enorme sentimento de esperança...

Dei por mim a vaguear pela rua como um mendigo, mesmo assim continuei com um sorriso rasgado no rosto e uma felicidade que transbordava pelo meu olhar, como uma criança inocente.
Muitos julgaram-me de louco, mas ninguém sabe realmente o significado da razão ou da loucura, do amor ou do ódio... Onde está escrita a receita do amor, da felicidade, quais as quantidades certas de sentimentos que devemos usar, para que tudo seja perfeito? Será que existe, ou cada ser tem a sua própria receita, e ninguém o pode julgar?

Sinto-me um estranho naquele emaranhado de gente que não reconheço, naquela cidade que Amélia teima em insistir que é a minha e que nada me diz.
Como posso ter vivido cerca de 30 anos naquele sítio que não reconheço? O que se passa comigo? O que foi feito da minha memória? Porque será que do meu passado só recordo uma face, um sorriso, o teu sorriso?! É perdido nestes meus pensamentos que ouço finalmente uma voz que me é familiar, ouço ao fundo o meu nome que ecoa por entre a multidão que me envolve… “ Guilherme… Guilherme, espera por mim! Vais perder-te!”.
Nesse momento ao ouvir ao longe o meu nome, exclamado com tamanha dor, acordo do transe em que me encontro, olho para trás e vejo a Amélia, ela acenava-me com um grito de desespero, com um soluçar de quem me procurava intensamente, fazia muito e infindável tempo. Recordava aquele chamamento dos tempos em ela me protegia de todo e qualquer sofrimento, do tempo em que ela sarava as minha feridas, pois, desde que fugira do hospital que ela sempre me buscara e com um aperto no coração não me conseguia encontrar.

Amélia tinha sido quem me tinha criado, quem me tinha preparado para a vida, quem me tinha apresentado a minha primeira namorada, quem me tinha pedido por favor para ser feliz.
Olhei-a nos olhos, sorri, debrucei-me sobre os meus joelhos, com as minhas mãos sujas limpei os meus olhos cansados de não dormir, de não comer e de chorar.

Dois segundos tinham passado, quando, por entre os meus dedos, ouvi o nome da minha irmã Amélia, invocado pela voz forte do seu marido, no seu chamamento havia o estremecer de uma vida, uma vida que estava naquele preciso momento a ser levada pela inércia de uma carro que ali passava.

Nesse momento tudo parou à minha volta, todas as pessoas, todos os carros, todos os pássaros, tudo ficou imóvel, somente uma película rodava na minha frente. O filme onde tudo voltou a ser como era antes, antes daquele terrível acidente, que tinha ocorrido fazia naquele dia, precisamente quatro meses.

Entretanto, tudo voltava a fazer sentido, a cidade, as pessoas, o café do Luisito, a escola ali ao virar da esquina, onde estudavam o João e a Carolina, mas acima de tudo recordei aquele rosto que existia como o brilho de um sol, consegui dar um nome aquele rosto, era Ana ela chamava-se Ana e era a minha mulher, ela tinha aquele tal sorriso, o mais lindo que eu alguma vez tinha visto, e agora sim entendia e encontrava justificação para tudo o que havia sonhado, para todos os meus pesadelos e era somente ela, ela que tinha morrido naquele acidente de avião quando juntos viajávamos para a Austrália...